domingo, 24 de outubro de 2010

Um Chamado João

(de Carlos Drummond de Andrade)

João era fabulista
fabuloso
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

“Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?”

Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?

Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?

João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso
cada qual em sua cor de água
sem misturar, sem conflitar?

E de cada gota redigia
nome, curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?

Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?

Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?

Tinha parte com… (sei lá
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.


(Publicado no jornal Correio da Manhã, de 22.11.1967, e reproduzido em: Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968.)

Campo Geral (apenas um trecho)

"Todos os dias que depois vieram,
eram tempos de doer. Miguilim tinha
sido arrancado de uma porção de
coisas, e estava no mesmo lugar.
Quando chegava o poder de chorar,
era até bom - enquanto estava
chorando, parecia que a alma toda se
sacudia, misturando ao vivo todas as
lembranças, as mais novas e as muito
antigas. Mas, no mais das horas, ele
estava cansado. Cansado e como que
assustado. Sufocado. Ele não era ele
mesmo. Diante dele, as pessôas, as
coisas, perdiam o peso de ser. Os
lugares, o Mutúm - se esvaziavam,
numa ligeireza, vagarosos. E Miguilim
mesmo se achava diferente de todos.
Ao vago, dava a mesma idéia de uma
vez, em que, muito pequeno, tinha
dormido de dia, fora de seu costume
- quando acordou, sentiu o existir
do mundo em hora estranha, e per-
guntou assustado: - 'Uai, Mãe, hoje
já é amanhã?!'"
(J. G. Rosa, Manuelzão e Miguilim)