terça-feira, 31 de agosto de 2010

Fábula Eleitoral para Crianças

Aproveitando os tempos e esse contexto de eleições presidenciais - para não citar todas as outras candidaturas - deixo-lhes uma crônica. Nela o assunto por mim mencionado no início desse prólogo é tratado de um modo leve e bem-humorado. Que o leitor tenha a mesma sensibilidade das crianças mencionadas no texto.

Um dia, meninos, as coisas da natureza quiseram eleger o rei ou a rainha do universo. Os três reinos entraram logo a confabular. Animais, vegetais e minerais começaram a viver uma vida agitada de surtos eloquentes, manobras, recados furtivos, mensagens cifradas, promessas mirabolantes, ardis, intrigas, palpites, conversinhas ao pé do ouvido.

Entre os bichos, era um tumulto formidável. Bandos de periquitos saíam em caravana eleitoral, matilhas de cães discursavam dentro da noite, cáfilas de camelos percorriam os desertos, formigas realizavam comícios fantásticos, a rainha das abelhas zumbia com o seu séquito, sem falar nos cardumes de peixes, nos lobos em alcatéias pelos montes, nas manadas de búfalos pelas savanas, nas revoadas instantâneas dos pombos-correios.A despeito dos imensos interesses em choque, de tantas contradições, é preciso dizer, a bem da verdade, que o pleito transcorreu com limpa lisura.
Todas as qualidades eram postas à prova: a astúcia da raposa, a agilidade dos felinos, o engenho dos cupins, o siso da coruja, o poder de intriga das serpentes, a picardia do zorro, a doçura da pomba, a teimosia do burro, o cosmopolitismo dos ratos.
O leão, o tigre, a pantera, o leopardo e outros queriam derramar muito sangue; os pássaros coloridos faziam frente única para indicar um pássaro colorido; já os pássaros que cantam, decidiram apontar como candidato o rouxinol, a cotovia, a patativa.
Os papagaios viviam a arengar bobagens pelos galhos. A raposa corria as várzeas articulando uma candidatura, ninguém sabia qual. O macaco era vaiado quando alegava semelhança com o homem. O cavalo se meteu a candidato, dando a sua condição de antigo senador do império romano.
O pavão, escondendo os pés, exibia a cauda. Certos bichos, como o boi e a íbis, invocavam seus direitos divinos, que não eram mais levados a sério. As hienas e os chacais opinavam por um conselho de notáveis, a ser instituído pelos animais ferozes que lhes deixavam os restos.
Nas profundezas do chão, o carbono fazia estranhas combinações com o hidrogênio. O diamante e o ouro brilhavam de esperança. As estrelas pretendiam uma coalizão de todo o espaço constelado em torno de Vênus, causando ciúmes à Lua.
As flores distribuíam perfumes à vontade. árvores agitadas recebiam recados que o vento trazia de longe. A floresta pensava eleger não um rei, mas um colegiado de carvalhos experientes.
E por toda a flora era um germinar, um brotar, um verdejar, um florescer sem conta.
Ao fim de tudo, a escolha não podia ter sido mais feliz, pois os três reinos unidos elegeram a rosa rainha suprema do universo.
(Paulo Mendes Campos)

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O quintal

O TEMPO passava impetuosamente, e eis que um dia num fim de tarde avistei o quintal da minha infância, era menor do que quando visto com meus olhos pequenos. Ver as coisas com olhos GRANDES às faz parecerem pequenas, do mesmo modo que ver as coisas com olhos pequenos às faz parecerem GRANDES.

Quando os olhos são pequenos os espaços são maiores, como quando dormia no armário de roupas, uma pequena caixa de madeira marrom habitada pelas roupas da família, lá estava a mãe, o pai, os irmãos, eu mesma estava lá em carne e roupa; aquela pequena caixa me parecia ENORME - maior do que os seus poucos metros sugeriam - e quente; era segura, lá eu podia me esconder de todos os monstros que povoavam os sonhos de minha infância. Perdia-me assim nas madrugadas e despreocupada, entregava-me aos sonhos de quintal dentro da caixa. Na casa todos dormiam alheios ao que se passava no armário, só as roupas dos dormintes sabiam da minha presença ali noite após noite, elas já me aguardavam para lhes fazer companhia, e antes que minha mãe ou qualquer outra pessoa acordasse, eu voltava para cama.

Como era bom brincar no quintal ENORME da minha infância, quando a casa não precisava ser tão GRANDE porque éramos pequenos e tínhamos olhos pequenos para ver tudo GRANDE. Ela ocupava apenas um pequeno espaço próximo à rua, o resto era todo quintal, quintal ENORME, era todo casa de pássaros que vinham se alimentar no jambeiro, na mangueira, no açaizeiro, no cajueiro, na ingazeira, na ameixeira; muitos dos quais lá faziam suas moradas, deixando, distraídos - para a nossa surpresa - cair, vez ou outra, um ovo dos altos galhos, galhos que pareciam inalcançáveis aos nossos olhos pequenos, mas que os pássaros alcançavam sem maiores esforços.

Os olhos foram crescendo e o quintal se apequenando, de repente se foi a mangueira; em seguida já não tínhamos mais ameixas; o ingazeiro sumiu logo depois; os cachos de açaí também desapareceram; passado algum tempo começamos a ter que pedir jambo para o vizinho, pois o jambeiro também precisou ser cortado. A casa foi se afastando da rua e entrando no quintal, e assim até o cajueiro perdeu o seu lugar. Para compensar tamanha ausência foi plantado, no pouco de quintal que ainda nos resta, um coqueiro, planta bonita, útil mais pelo fruto, que pela sombra. Mas solitário como estava não conseguiu produzir, ele também se rendeu a falta de quintal e morreu por vontade própria, deixando-nos também sem o coqueiro, sem o coco, sem a água.
(Daniele Oliveira)

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Três Rubem(s) e uma crônica

Sempre pensei em ganhar (ou perder) a vida escrevendo, houve uma época em que quis escrever romances, cheguei até a pensar em alguns e mesmo iniciar uns rascunhos, mas faltou-me paciência e leitura para seguir à diante. Não sabia que um abismo profundo nos separava, a mim e o sonho de escrever. Frustrada a primeira tentativa, ficou a constatação de que eu não sabia criar, não era um ser criativo; nos testes de adivinhações na internet eu escolhia sempre o “martelo vermelho”, o que significa que penso como 98% da população, podendo ser classificada como normal, ou diferente dos 2% “que são suficientemente diferentes para pensar em outra coisa”. O fato é que eu sabia que não podia, até o dia em que se iniciou a saga em busca dos contos de Rubem Fonseca e seu personagem que ensinava a ler as putas.

Tudo teve início quando, em um congresso de educação, avistei num stand um livro de crônicas de Rubem Alves, o nome Rubem logo chamou a minha atenção, pensei estar diante do famigerado criador dos contos com putas que eram alfabetizadas por um funcionário da Cia de água e esgoto do Rio de Janeiro. O livro estava envolto em papel filme, não tive acesso ao seu conteúdo, adquiri a obra “no escuro”, voltei feliz para casa pensando ter na bolsa os contos que tanto me interessavam, e que eu mal podia esperar para ler. Ao chegar em minha casa, retirado o papel filme, ansiosa, pensei, finalmente poderei folhear a literatura tão cobiçada. Mas grande foi minha surpresa e um pouco menor a frustração ao perceber, pelo conteúdo das crônicas, que se tratava do Rubem errado. Continuei a leitura mesmo após essa constatação, seguida de uma outra, o que procurava eram as crônicas de Rubem Braga, pensei. Assim segui em minha busca.

Em uma noite, comentando o ocorrido com uma colega de trabalho que - sensibilizada com a minha desdita – empenhou seu tempo e paciência para me ajudar, consegui o que de mais precioso eu poderia tocar naquele momento: um livro com uma seleção de crônicas de diversos autores, entre eles, estava lá o motivo de tal empréstimo: as crônicas do Rubem Braga. E eu as devorei, não soltava mais o livro. Aquela leitura me roubava todo o tempo, mas ao mesmo tempo me dava muitas coisas e a primeira delas foi a certeza de que novamente tinha nas mãos outro Rubem diferente do que buscava. Foi então que me veio à mente o sobrenome Fonseca que estranhamente havia sido apagado de minha memória, eu o encontrei, encontrei-o naquelas crônicas que não eram dele, mas que me levaram a ele e me levaram a outros lugares também.

Certa vez alguém me disse que bons poetas são bons leitores de poesia, o mesmo acontece com a crônica, são bons cronistas, os que lêem avidamente as crônicas dos Rubens, das Clarices, dos Drummonds. Foi o que eu fiz, em busca dos contos de Rubem Fonseca me tornei leitora dos Rubens Alves e Braga, vivi a Odisséia das crônicas como um Ulisses que não procura o lar, mas o Rubem certo, sem o canto das sereias ou as porções de Circe, sem ciclopes; os ouvidos sempre atentos e os olhos, e o paladar apurados. Assim foi o percurso entre o sonho de escrever e o surgimento da primeira crônica...
Quando finalmente, sem que eu esperasse, chegou o grande dia... numa feira, em meio à uma infinidade de livros, um se destacava com sua capa preta e os escritos em vermelho. Atravessei o stand (que não era pequeno) e fui ao seu encontro. EU O ENCONTREI, eram as primeiras letras grandes, quase luminosas, as mesmas letras que me chamaram a atenção na capa preta; diziam: RUBEM FONSECA. Que felicidade! Adquiri-o juntamente com um outro volume contendo mais 64 contos. Agora, além das crônicas, tinha contos para mais alguns dias. Era o fim da busca pelo Rubem Fonseca e o início de muitas outras buscas...
(Daniele Oliveira)

Conta-me um conto: Scheherazade e As mil e uma noites

“O rei ordenou a seu vizir que lhe levasse, todas as noites, uma virgem; passada a noite, mandava matá-la. Assim aconteceu durante três anos, e na cidade já não havia donzela que pudesse servir para os assaltos daquele cavaleiro. Mas o vizir tinha uma filha de grande formosura chamada Scheherazade... tão eloquente, que dava prazer ouvi-la”. (As mil e uma noites).

Jorge Luis Borges opina que o livro As mil e uma noites faz parte dos textos-chave da história da literatura, que, para ele, incluem Dom Quixote e A Divina Comédia. O título já é encantador, pois, nas palavras de Borges, a sua beleza particular se deve ao fato de que a palavra mil é, para nós, quase sinônimo de infinito. O livro, onde Shahzarád “conta contos” ao rei sassânida Shahriyár, são de uma beleza ímpar.

Scheherazade possuía uma linguagem e um encanto que todas as belíssimas e sensuais donzelas que dormiram com o sultão não tiveram. E havia apenas uma Scheherazade! Ela era a última esperança. A forma como o texto descreve a jovem é reveladora. Quase nada diz sobre sua beleza. Faz silêncio total sobre o seu virtuosismo erótico. Mas conta que ela lera livros de toda espécie, que havia memorizado grande quantidade de poemas e narrativas, que decorara os provérbios populares e as sentenças dos filósofos.

Como diz Rubem Alves, As mil e uma noites “são a estória de um amor – um amor que não acaba nunca”. E o filósofo francês Michael Foucault afirmou que nas mil e uma noites "falava-se, narrava-se até o amanhecer para afastar a morte, para adiar o prazo desse desenlace que deveria fechar a boca do narrador". Enquanto houver verbo, há vida.

“O corpo é um lugar maravilhoso de delícias. Mas Xerazade sabia que todo amor construído sobre as delícias do corpo tem vida breve. A chama se apaga tão logo o corpo se tenha esvaziado do seu fogo. O seu triste destino é ser decapitado pela madrugada: não é eterno, posto que é chama. E então, quando as chamas dos corpos já se haviam apagado, Xerazade sopra suavemente. Fala. Erotiza os vazios adormecidos do sultão. Acorda o mundo mágico da fantasia. Cada estória contém uma outra, dentro de si, infinitamente. Não há um orgasmo que ponha fim ao desejo. E ela lhe parece bela, como nenhuma outra. Porque uma pessoa é bela, não pela beleza dela, mas pela beleza nossa que se reflete nela...

As mil e uma noites são a estória de cada um. Em cada um mora um sultão. Em cada um mora uma Xerazade. Aqueles que se dedicam à sutil e deliciosa arte de fazer amor com a boca e o ouvido (estes órgãos sexuais que nunca vi mencionados nos tratados de educação sexual...) podem ter a esperança de que as madrugadas não terminarão com o vento que apaga a vela, mas com o sopro que a faz reacender-se.” (Rubem Alves, “As mil e uma noites”, em O Retorno E Terno; crônicas).

Bem-aventurada Scheherazade! E mais bem-aventurado sultão!

Conta-me um conto!

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