quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Conta-me um conto: Scheherazade e As mil e uma noites

“O rei ordenou a seu vizir que lhe levasse, todas as noites, uma virgem; passada a noite, mandava matá-la. Assim aconteceu durante três anos, e na cidade já não havia donzela que pudesse servir para os assaltos daquele cavaleiro. Mas o vizir tinha uma filha de grande formosura chamada Scheherazade... tão eloquente, que dava prazer ouvi-la”. (As mil e uma noites).

Jorge Luis Borges opina que o livro As mil e uma noites faz parte dos textos-chave da história da literatura, que, para ele, incluem Dom Quixote e A Divina Comédia. O título já é encantador, pois, nas palavras de Borges, a sua beleza particular se deve ao fato de que a palavra mil é, para nós, quase sinônimo de infinito. O livro, onde Shahzarád “conta contos” ao rei sassânida Shahriyár, são de uma beleza ímpar.

Scheherazade possuía uma linguagem e um encanto que todas as belíssimas e sensuais donzelas que dormiram com o sultão não tiveram. E havia apenas uma Scheherazade! Ela era a última esperança. A forma como o texto descreve a jovem é reveladora. Quase nada diz sobre sua beleza. Faz silêncio total sobre o seu virtuosismo erótico. Mas conta que ela lera livros de toda espécie, que havia memorizado grande quantidade de poemas e narrativas, que decorara os provérbios populares e as sentenças dos filósofos.

Como diz Rubem Alves, As mil e uma noites “são a estória de um amor – um amor que não acaba nunca”. E o filósofo francês Michael Foucault afirmou que nas mil e uma noites "falava-se, narrava-se até o amanhecer para afastar a morte, para adiar o prazo desse desenlace que deveria fechar a boca do narrador". Enquanto houver verbo, há vida.

“O corpo é um lugar maravilhoso de delícias. Mas Xerazade sabia que todo amor construído sobre as delícias do corpo tem vida breve. A chama se apaga tão logo o corpo se tenha esvaziado do seu fogo. O seu triste destino é ser decapitado pela madrugada: não é eterno, posto que é chama. E então, quando as chamas dos corpos já se haviam apagado, Xerazade sopra suavemente. Fala. Erotiza os vazios adormecidos do sultão. Acorda o mundo mágico da fantasia. Cada estória contém uma outra, dentro de si, infinitamente. Não há um orgasmo que ponha fim ao desejo. E ela lhe parece bela, como nenhuma outra. Porque uma pessoa é bela, não pela beleza dela, mas pela beleza nossa que se reflete nela...

As mil e uma noites são a estória de cada um. Em cada um mora um sultão. Em cada um mora uma Xerazade. Aqueles que se dedicam à sutil e deliciosa arte de fazer amor com a boca e o ouvido (estes órgãos sexuais que nunca vi mencionados nos tratados de educação sexual...) podem ter a esperança de que as madrugadas não terminarão com o vento que apaga a vela, mas com o sopro que a faz reacender-se.” (Rubem Alves, “As mil e uma noites”, em O Retorno E Terno; crônicas).

Bem-aventurada Scheherazade! E mais bem-aventurado sultão!

Conta-me um conto!

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