sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Livro de 2010

A Divina Comédia (Clássicos da Literatural internacional) (Portuguese Edition)
Autor: Dante Alighieri.


Pelo poético; pelos toques de ironia responsáveis pelo "humor" presente na obra; pela visão arrebatadora que Dante nos oferece do inferno, purgatório e, por fim, do paraíso. Se Dante teve como guia em sua "pequena odisséia" a Virgílio e Beatriz, nós, leitores, o temos como o nosso guia. É uma viagem incrível!

sábado, 4 de dezembro de 2010

"Meat is murder"

Programa de domingo da família brasileira, churrasco. Antes disso, no sábado, lanches, fast-food. As lanchonetes são verdadeiros "necrotérios", semelhante a cozinha no domingo, uma variedade de animais mortos, inocentemente mortos. Muitos deles foram criados especialmente para isso, nos servir de alimento, a indústria da morte.
Não precisamos de carne mais do que os pobres animais que perdem a vida para nós nos alimentarmos deles.



quarta-feira, 24 de novembro de 2010

"A carne é fraca"

Para os que estão preocupados com os problemas ambientais, desmatamento, aquecimento global; para os que prezam pelo meio ambiente evitando o uso de carros, procurando plantar árvores e mesmo usando papel reciclado, mas não dispensam um bom churrasco no domingo ou um hambúrguer do McDonald's; para os que ainda não se deram conta das dimensões do impacto gerado pelo agronegócio; o documentário abaixo mostra o quão nocivo ele pode ser, uma vez que gera desmatamento necessário à criação dos rebanhos e com isso a emissão de gases decorrentes das queimadas, poluição das águas do lençol freático e de rios com dejetos de animais. Se os inofensivos animais sofrem ao perderem a vida, mais sofreremos nós (E O PLANETA) em consequência de tal prática.
Cabe a reflexão sobre o assunto, e o documentário produzido pelo instituto Nina Rosa pode ser o pontapé inicial para se pensar o consumo de carne.













domingo, 24 de outubro de 2010

Um Chamado João

(de Carlos Drummond de Andrade)

João era fabulista
fabuloso
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

“Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?”

Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?

Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?

João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso
cada qual em sua cor de água
sem misturar, sem conflitar?

E de cada gota redigia
nome, curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?

Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?

Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?

Tinha parte com… (sei lá
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.


(Publicado no jornal Correio da Manhã, de 22.11.1967, e reproduzido em: Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968.)

Campo Geral (apenas um trecho)

"Todos os dias que depois vieram,
eram tempos de doer. Miguilim tinha
sido arrancado de uma porção de
coisas, e estava no mesmo lugar.
Quando chegava o poder de chorar,
era até bom - enquanto estava
chorando, parecia que a alma toda se
sacudia, misturando ao vivo todas as
lembranças, as mais novas e as muito
antigas. Mas, no mais das horas, ele
estava cansado. Cansado e como que
assustado. Sufocado. Ele não era ele
mesmo. Diante dele, as pessôas, as
coisas, perdiam o peso de ser. Os
lugares, o Mutúm - se esvaziavam,
numa ligeireza, vagarosos. E Miguilim
mesmo se achava diferente de todos.
Ao vago, dava a mesma idéia de uma
vez, em que, muito pequeno, tinha
dormido de dia, fora de seu costume
- quando acordou, sentiu o existir
do mundo em hora estranha, e per-
guntou assustado: - 'Uai, Mãe, hoje
já é amanhã?!'"
(J. G. Rosa, Manuelzão e Miguilim)

domingo, 5 de setembro de 2010

As mil e uma noites

Estou me entregando ao prazer ocioso de reler As mil e uma noites. O encantamento começa com o título que, nas palavras de Jorge Luís Borges, é um dos mais belos do mundo. Segundo ele, a nós quase sinônimo de infinito. “Falar em mil noites é falar em infinitas noites (...). Dizer mil e uma noites é acrescentar uma além do infinito.”

As mil e uma noites são a estória de um amor – um amor que não acaba nunca. Não existe ali lugar para os versos imortais do Vinicius (tão belos que o próprio Diabo citou em sua polêmica com o Criador): “Que não seja eterno, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure...” . Essas são as palavras de alguém que já sente o sopro do vento que dentro em pouco apagará a vela: declaração de amor que anuncia uma despedida.

Mas é que quem ama aceita. Mesmo aqueles em quem a chama se apagou sonham em ouvir de alguém, um dia, as palavras que Heine escreveu para uma mulher: “Eu te amarei eternamente e ainda depois”. É preciso que a chama não se apague nunca, mesmo que a vela vá se consumindo. A arte de amar é a arte de não deixar que a chama se apague. Não se deve deixar a luz dormir. É preciso se apressar em acordá-la (Bachelard). E, coisa curiosa: a mesma chama que o vento impetuoso apaga volta a se acender pela carícia do sopro suave...

As mil e uma noites são uma estória da luta entre o vento impetuoso e o sopro suave. Ela revela o segredo do amor que não se apaga nunca.

Um sultão, descobrindo-se traído pela esposa a quem amava perdidamente, toma uma decisão cruel. Não podia viver sem o amor de uma mulher. Mas também não podia suportar a possibilidade da traição. Resolve, então, que iria se casar com as moças mais belas dos seus domínios, mas, depois da primeira noite de amor, mandaria decapitá-las. Assim o amor se renovaria a cada dia em todo o seu vigor de fogo impetuoso, sem nenhum sopro de infidelidade que pudesse apagá-lo. Espalham-se logo, pelo reino, as notícias das coisas terríveis que aconteciam no palácio real: as jovens desapareciam, logo depois da noite nupcial. Xerazade, filha do vizir, procura então o seu pai e lhe anuncia sua espantosa decisão: desejava tornar-se esposa do sultão. O pai, desesperado, lhe revela o triste destino que a aguardava, pois ele mesmo era quem cuidava das execuções. Mas a jovem se mantém irredutível.

A forma como o texto descreve a jovem Xerazade é reveladora. Quase nada diz sobre sua beleza. Faz silêncio total sobre o seu virtuosismo erótico. Mas conta que ela lera livros de toda espécie, que havia memorizado grande quantidade de poemas e narrativas, que decorara os provérbios populares e as sentenças dos filósofos.
E Xerazade se casa com o sultão. Realizados os atos de amor físico que acontecem nas noites de núpcias, quando o fogo do amor carnal já se esgotara no corpo do esposo, quando só restava esperar o raiar do dia para que a jovem fosse sacrificada, ela começa a falar. Conta estórias. Suas palavras penetram os ouvidos vaginais do sultão. Suavemente, como música. O ouvido é feminino, vazio que espera e acolhe, que se permite ser penetrado. A fala é masculina, algo que cresce e penetra nos vazios da alma. Segundo antiquíssima tradição, foi assim que o deus humano foi concebido: pelo sopro poético do verbo divino, penetrando os ouvidos encantados e acolhedores de uma virgem.

O corpo é um lugar maravilhoso de delícias. Mas Xerazade sabia que todo amor construído sobre as delícias do corpo tem vida breve. A chama se apaga tão logo o corpo se tenha esvaziado do seu fogo. O seu triste destino é ser decapitado pela madrugada: não é eterno, posto que é chama. E então, quando as chamas dos corpos já se haviam apagado, Xerazade sopra suavemente. Fala. Erotiza os vazios adormecidos do sultão. Acorda o mundo mágico da fantasia. Cada estória contém uma outra, dentro de si, infinitamente. Não há um orgasmo que ponha fim ao desejo. E ela lhe parece bela, como nenhuma outra. Porque uma pessoa é bela, não pela beleza dela, mas pela beleza nossa que se reflete nela...
Conta a estória que o sultão, encantado pelas estórias de Xerazade, foi adiando a execução, por mil e uma noites, eternamente e um dia mais.
Não se trata de uma estória de amor, entre outras. É, ao contrário, a estória do nascimento e da vida do amor. O amor vive neste sutil fio de conversação, balançando-se entre a boca e o ouvido. A Sônia Braga, ao final do documentário de celebração dos 60 anos do Tom Jobim, disse que o Tom era o homem que toda mulher gostaria de ter. E explicou: ''Porque ele é masculino e feminino ao mesmo tempo...'' o segredo do amor é a androgenia: somos todos, homens e mulheres, masculinos e femininos ao mesmo tempo. É preciso saber ouvir. Acolher. Deixar que o outro entre dentro da gente. Ouvir em silêncio. Sem expulsa-lo por meio de argumentos e contra-razões. Nada mais fatal contra o amor que a resposta rápida. Alfanje que decapita. Há pessoas muito velhas cujos ouvidos ainda são virginais: nunca foram penetrados. E é preciso saber falar. Há certas falas que são um estupro. Somente sabem falar os que sabem fazer silêncio e ouvir. E, sobretudo, os que se dedicam à difícil arte de adivinhar: adivinhar os mundos adormecidos que habitam os vazios do outro.

As mil e uma noites são a estória de cada um. Em cada um mora um sultão. Em cada um mora uma Xerazade. Aqueles que se dedicam à sutil e deliciosa arte de fazer amor com a boca e o ouvido (estes órgãos sexuais que nunca vi mencionados nos tratados de educação sexual...) podem ter a esperança de que as madrugadas não terminarão com o vento que apaga a vela, mas com o sopro que a faz reacender-se.
(Crônica de Rubem Alves, texto integral)

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Fábula Eleitoral para Crianças

Aproveitando os tempos e esse contexto de eleições presidenciais - para não citar todas as outras candidaturas - deixo-lhes uma crônica. Nela o assunto por mim mencionado no início desse prólogo é tratado de um modo leve e bem-humorado. Que o leitor tenha a mesma sensibilidade das crianças mencionadas no texto.

Um dia, meninos, as coisas da natureza quiseram eleger o rei ou a rainha do universo. Os três reinos entraram logo a confabular. Animais, vegetais e minerais começaram a viver uma vida agitada de surtos eloquentes, manobras, recados furtivos, mensagens cifradas, promessas mirabolantes, ardis, intrigas, palpites, conversinhas ao pé do ouvido.

Entre os bichos, era um tumulto formidável. Bandos de periquitos saíam em caravana eleitoral, matilhas de cães discursavam dentro da noite, cáfilas de camelos percorriam os desertos, formigas realizavam comícios fantásticos, a rainha das abelhas zumbia com o seu séquito, sem falar nos cardumes de peixes, nos lobos em alcatéias pelos montes, nas manadas de búfalos pelas savanas, nas revoadas instantâneas dos pombos-correios.A despeito dos imensos interesses em choque, de tantas contradições, é preciso dizer, a bem da verdade, que o pleito transcorreu com limpa lisura.
Todas as qualidades eram postas à prova: a astúcia da raposa, a agilidade dos felinos, o engenho dos cupins, o siso da coruja, o poder de intriga das serpentes, a picardia do zorro, a doçura da pomba, a teimosia do burro, o cosmopolitismo dos ratos.
O leão, o tigre, a pantera, o leopardo e outros queriam derramar muito sangue; os pássaros coloridos faziam frente única para indicar um pássaro colorido; já os pássaros que cantam, decidiram apontar como candidato o rouxinol, a cotovia, a patativa.
Os papagaios viviam a arengar bobagens pelos galhos. A raposa corria as várzeas articulando uma candidatura, ninguém sabia qual. O macaco era vaiado quando alegava semelhança com o homem. O cavalo se meteu a candidato, dando a sua condição de antigo senador do império romano.
O pavão, escondendo os pés, exibia a cauda. Certos bichos, como o boi e a íbis, invocavam seus direitos divinos, que não eram mais levados a sério. As hienas e os chacais opinavam por um conselho de notáveis, a ser instituído pelos animais ferozes que lhes deixavam os restos.
Nas profundezas do chão, o carbono fazia estranhas combinações com o hidrogênio. O diamante e o ouro brilhavam de esperança. As estrelas pretendiam uma coalizão de todo o espaço constelado em torno de Vênus, causando ciúmes à Lua.
As flores distribuíam perfumes à vontade. árvores agitadas recebiam recados que o vento trazia de longe. A floresta pensava eleger não um rei, mas um colegiado de carvalhos experientes.
E por toda a flora era um germinar, um brotar, um verdejar, um florescer sem conta.
Ao fim de tudo, a escolha não podia ter sido mais feliz, pois os três reinos unidos elegeram a rosa rainha suprema do universo.
(Paulo Mendes Campos)

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O quintal

O TEMPO passava impetuosamente, e eis que um dia num fim de tarde avistei o quintal da minha infância, era menor do que quando visto com meus olhos pequenos. Ver as coisas com olhos GRANDES às faz parecerem pequenas, do mesmo modo que ver as coisas com olhos pequenos às faz parecerem GRANDES.

Quando os olhos são pequenos os espaços são maiores, como quando dormia no armário de roupas, uma pequena caixa de madeira marrom habitada pelas roupas da família, lá estava a mãe, o pai, os irmãos, eu mesma estava lá em carne e roupa; aquela pequena caixa me parecia ENORME - maior do que os seus poucos metros sugeriam - e quente; era segura, lá eu podia me esconder de todos os monstros que povoavam os sonhos de minha infância. Perdia-me assim nas madrugadas e despreocupada, entregava-me aos sonhos de quintal dentro da caixa. Na casa todos dormiam alheios ao que se passava no armário, só as roupas dos dormintes sabiam da minha presença ali noite após noite, elas já me aguardavam para lhes fazer companhia, e antes que minha mãe ou qualquer outra pessoa acordasse, eu voltava para cama.

Como era bom brincar no quintal ENORME da minha infância, quando a casa não precisava ser tão GRANDE porque éramos pequenos e tínhamos olhos pequenos para ver tudo GRANDE. Ela ocupava apenas um pequeno espaço próximo à rua, o resto era todo quintal, quintal ENORME, era todo casa de pássaros que vinham se alimentar no jambeiro, na mangueira, no açaizeiro, no cajueiro, na ingazeira, na ameixeira; muitos dos quais lá faziam suas moradas, deixando, distraídos - para a nossa surpresa - cair, vez ou outra, um ovo dos altos galhos, galhos que pareciam inalcançáveis aos nossos olhos pequenos, mas que os pássaros alcançavam sem maiores esforços.

Os olhos foram crescendo e o quintal se apequenando, de repente se foi a mangueira; em seguida já não tínhamos mais ameixas; o ingazeiro sumiu logo depois; os cachos de açaí também desapareceram; passado algum tempo começamos a ter que pedir jambo para o vizinho, pois o jambeiro também precisou ser cortado. A casa foi se afastando da rua e entrando no quintal, e assim até o cajueiro perdeu o seu lugar. Para compensar tamanha ausência foi plantado, no pouco de quintal que ainda nos resta, um coqueiro, planta bonita, útil mais pelo fruto, que pela sombra. Mas solitário como estava não conseguiu produzir, ele também se rendeu a falta de quintal e morreu por vontade própria, deixando-nos também sem o coqueiro, sem o coco, sem a água.
(Daniele Oliveira)

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Três Rubem(s) e uma crônica

Sempre pensei em ganhar (ou perder) a vida escrevendo, houve uma época em que quis escrever romances, cheguei até a pensar em alguns e mesmo iniciar uns rascunhos, mas faltou-me paciência e leitura para seguir à diante. Não sabia que um abismo profundo nos separava, a mim e o sonho de escrever. Frustrada a primeira tentativa, ficou a constatação de que eu não sabia criar, não era um ser criativo; nos testes de adivinhações na internet eu escolhia sempre o “martelo vermelho”, o que significa que penso como 98% da população, podendo ser classificada como normal, ou diferente dos 2% “que são suficientemente diferentes para pensar em outra coisa”. O fato é que eu sabia que não podia, até o dia em que se iniciou a saga em busca dos contos de Rubem Fonseca e seu personagem que ensinava a ler as putas.

Tudo teve início quando, em um congresso de educação, avistei num stand um livro de crônicas de Rubem Alves, o nome Rubem logo chamou a minha atenção, pensei estar diante do famigerado criador dos contos com putas que eram alfabetizadas por um funcionário da Cia de água e esgoto do Rio de Janeiro. O livro estava envolto em papel filme, não tive acesso ao seu conteúdo, adquiri a obra “no escuro”, voltei feliz para casa pensando ter na bolsa os contos que tanto me interessavam, e que eu mal podia esperar para ler. Ao chegar em minha casa, retirado o papel filme, ansiosa, pensei, finalmente poderei folhear a literatura tão cobiçada. Mas grande foi minha surpresa e um pouco menor a frustração ao perceber, pelo conteúdo das crônicas, que se tratava do Rubem errado. Continuei a leitura mesmo após essa constatação, seguida de uma outra, o que procurava eram as crônicas de Rubem Braga, pensei. Assim segui em minha busca.

Em uma noite, comentando o ocorrido com uma colega de trabalho que - sensibilizada com a minha desdita – empenhou seu tempo e paciência para me ajudar, consegui o que de mais precioso eu poderia tocar naquele momento: um livro com uma seleção de crônicas de diversos autores, entre eles, estava lá o motivo de tal empréstimo: as crônicas do Rubem Braga. E eu as devorei, não soltava mais o livro. Aquela leitura me roubava todo o tempo, mas ao mesmo tempo me dava muitas coisas e a primeira delas foi a certeza de que novamente tinha nas mãos outro Rubem diferente do que buscava. Foi então que me veio à mente o sobrenome Fonseca que estranhamente havia sido apagado de minha memória, eu o encontrei, encontrei-o naquelas crônicas que não eram dele, mas que me levaram a ele e me levaram a outros lugares também.

Certa vez alguém me disse que bons poetas são bons leitores de poesia, o mesmo acontece com a crônica, são bons cronistas, os que lêem avidamente as crônicas dos Rubens, das Clarices, dos Drummonds. Foi o que eu fiz, em busca dos contos de Rubem Fonseca me tornei leitora dos Rubens Alves e Braga, vivi a Odisséia das crônicas como um Ulisses que não procura o lar, mas o Rubem certo, sem o canto das sereias ou as porções de Circe, sem ciclopes; os ouvidos sempre atentos e os olhos, e o paladar apurados. Assim foi o percurso entre o sonho de escrever e o surgimento da primeira crônica...
Quando finalmente, sem que eu esperasse, chegou o grande dia... numa feira, em meio à uma infinidade de livros, um se destacava com sua capa preta e os escritos em vermelho. Atravessei o stand (que não era pequeno) e fui ao seu encontro. EU O ENCONTREI, eram as primeiras letras grandes, quase luminosas, as mesmas letras que me chamaram a atenção na capa preta; diziam: RUBEM FONSECA. Que felicidade! Adquiri-o juntamente com um outro volume contendo mais 64 contos. Agora, além das crônicas, tinha contos para mais alguns dias. Era o fim da busca pelo Rubem Fonseca e o início de muitas outras buscas...
(Daniele Oliveira)

Conta-me um conto: Scheherazade e As mil e uma noites

“O rei ordenou a seu vizir que lhe levasse, todas as noites, uma virgem; passada a noite, mandava matá-la. Assim aconteceu durante três anos, e na cidade já não havia donzela que pudesse servir para os assaltos daquele cavaleiro. Mas o vizir tinha uma filha de grande formosura chamada Scheherazade... tão eloquente, que dava prazer ouvi-la”. (As mil e uma noites).

Jorge Luis Borges opina que o livro As mil e uma noites faz parte dos textos-chave da história da literatura, que, para ele, incluem Dom Quixote e A Divina Comédia. O título já é encantador, pois, nas palavras de Borges, a sua beleza particular se deve ao fato de que a palavra mil é, para nós, quase sinônimo de infinito. O livro, onde Shahzarád “conta contos” ao rei sassânida Shahriyár, são de uma beleza ímpar.

Scheherazade possuía uma linguagem e um encanto que todas as belíssimas e sensuais donzelas que dormiram com o sultão não tiveram. E havia apenas uma Scheherazade! Ela era a última esperança. A forma como o texto descreve a jovem é reveladora. Quase nada diz sobre sua beleza. Faz silêncio total sobre o seu virtuosismo erótico. Mas conta que ela lera livros de toda espécie, que havia memorizado grande quantidade de poemas e narrativas, que decorara os provérbios populares e as sentenças dos filósofos.

Como diz Rubem Alves, As mil e uma noites “são a estória de um amor – um amor que não acaba nunca”. E o filósofo francês Michael Foucault afirmou que nas mil e uma noites "falava-se, narrava-se até o amanhecer para afastar a morte, para adiar o prazo desse desenlace que deveria fechar a boca do narrador". Enquanto houver verbo, há vida.

“O corpo é um lugar maravilhoso de delícias. Mas Xerazade sabia que todo amor construído sobre as delícias do corpo tem vida breve. A chama se apaga tão logo o corpo se tenha esvaziado do seu fogo. O seu triste destino é ser decapitado pela madrugada: não é eterno, posto que é chama. E então, quando as chamas dos corpos já se haviam apagado, Xerazade sopra suavemente. Fala. Erotiza os vazios adormecidos do sultão. Acorda o mundo mágico da fantasia. Cada estória contém uma outra, dentro de si, infinitamente. Não há um orgasmo que ponha fim ao desejo. E ela lhe parece bela, como nenhuma outra. Porque uma pessoa é bela, não pela beleza dela, mas pela beleza nossa que se reflete nela...

As mil e uma noites são a estória de cada um. Em cada um mora um sultão. Em cada um mora uma Xerazade. Aqueles que se dedicam à sutil e deliciosa arte de fazer amor com a boca e o ouvido (estes órgãos sexuais que nunca vi mencionados nos tratados de educação sexual...) podem ter a esperança de que as madrugadas não terminarão com o vento que apaga a vela, mas com o sopro que a faz reacender-se.” (Rubem Alves, “As mil e uma noites”, em O Retorno E Terno; crônicas).

Bem-aventurada Scheherazade! E mais bem-aventurado sultão!

Conta-me um conto!

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